despojos da sociedade
avenida praia da vitória em lisboa, 21 horas desta quinta feira. dentro do carro vejo chegar um veículo motorizado daqueles que têm uma cabine fechada atrás. quando a porta de abre saem lá de dentro duas crianças e uma senhora. o homem ajuda-os a descer e olha em redor, do outro lado do passeio estão uma meia dúzia de pessoas tentando proteger-se do frio intenso que, no calorzinho do carro, adivinho estar lá fora.
a família olha em volta e atravessa a rua, devagar. todos os olhares se voltam para a esquina do saldanha. observo melhor o grupo. dois ou três são declaradamente "sem abrigo". mal trajados, barba por fazer, olhar macilento traído pela metadona. contudo, os restantes nada têm a ver com eles. classe média pura, "arrumadinhos", telefone portátil nas mãos, um deles, e um outro com uma mala onde se adivinhava a presença de um portátil. aparências por certo...
olho em volta para tentar perceber o que se passa mas não obtenho resposta. aos poucos chega mais gente: mais uns três ou quatro "agarrados" e para aí uma dezena dos "outros".
fico incomodado por não conseguir perceber o que se passa, até que a resposta chega, cruel.
uma ford transit chega e pára à minha frente, lá de dentro saem dois rapazes e duas raparigas. o grupo que estava no outro passeio e que já ultrapassa as duas dezenas, atravessa a rua de forma tímida. as portas da carrinha abrem-se de par em par e o choque: dois panelões de sopa repousam no seu interior. forma-se uma fila, ordeira, e a cada pessoa é dada uma malga de sopa fumegante, um pão, uma garrafa de água e uma maçã. as crianças tiveram direito a dois pacotinhos de leite.
descobri, da forma mais dura, o que podem ter em comum um grupo de pessoas tão diferentes: são os sedimentos da sociedade, os despojos de um dia onde por certo aquela foi a única refeição quente que os seus estômagos acolheram.
veio-me à ideia a frase bíblia: "e as crianças senhor, e as crianças"?
Comentários
Andamo-nos a lamentar constantemente e quando olhamos para o lado...